Quinze anos depois do Centro Histórico ter sido inscrito na Lista de Património Mundial da UNESCO, arquitectos, urbanistas e associações que se dedicam à preservação do património analisam os trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos nesta área. Entre críticas e reparos devido à morosidade no que respeita ao Plano de Gestão e Salvaguarda e a “falta de transparência” relativa a determinados critérios do Instituto Cultural, há também quem aponte os efeitos positivos deste marco, desde logo ao nível do turismo e da consciência por parte da população
Catarina Pereira e Rima Cui
Arquitectos, urbanistas e associações que se dedicam, de alguma forma, ao património, falaram ao Jornal TRIBUNA DE MACAU sobre os trabalhos desenvolvidos ao longo dos últimos 15 anos, após o Centro Histórico ter sido inscrito na Lista de Património Mundial da UNESCO. Apontaram a importância desse marco, o que trouxe a Macau e quais os desafios que perspectivam para o futuro em termos de património.
O presidente da Associação dos Embaixadores do Património de Macau, Wallace Kwah, considera que, “apesar da consciência para a protecção e salvaguarda do Património Cultural ter aumentado entre o Governo e a sociedade civil, uma grande parte dos cidadãos continua a não conhecer a sua importância”. Na sua perspectiva, “trata-se de um tema que merece ponderação das autoridades”.
Wallace Kwah observa que foram muitas as influências que o feito trouxe para o território, desde logo ao nível do turismo. “Além de acrescentar novos elementos para atrair turistas, ajudando a criar a nossa marca mundial de turismo, contribuiu para aumentar a atractividade de Macau enquanto destino turístico”, referiu. Por outro lado, “incentivou altamente a divulgação junto dos residentes e dos turistas no que respeita à protecção do Património Cultural, incentivando as pessoas a reflectir na importância da sua salvaguarda”.
Já o fundador do Grupo para a Salvaguarda do Farol da Guia diz que é “uma honra” a ajuda do país para a inscrição do Centro Histórico na lista da UNESCO, porém, sente-se “insatisfeito”. “Sinto-me sempre insatisfeito com o desempenho do Instituto Cultural (IC) no que respeita à salvaguarda do Património Cultural. No espaço de cinco anos, o IC trocou de presidente quatro vezes, pelo que muitas políticas não conseguiram corresponder à realidade”, afirmou a este jornal.
Lembrando que, em 2008, a UNESCO obrigou à suspensão da obra de um edifício alto na Calçada do Gaio e que o grupo enviou duas cartas à organização, Chan Tak Seng sublinha que, “mesmo assim, o IC continua a faltar ao respeito ao Património”. “Uma das provas é que com a passagem destes 15 anos, ainda não temos um Plano de Salvaguarda e Gestão do Centro Histórico e uma lei que limite a altura dos edifícios nas suas imediações. É uma pena que ainda estejamos a utilizar um despacho do Chefe do Executivo emitido há 12 anos”, lamentou.
Chan Tak Seng
“É preciso haver um planeamento detalhado para zonas diferentes. Há edifícios altos planeados em zonas distintas que podem afectar a visão ligada a construções patrimoniais. Porque é que o Governo não legislou? Temos a Lei de Salvaguarda do Património Cultural, porque é que não a usamos para proteger efectivamente o Património?”, questionou.
Chan Tak Seng vai mais longe e diz mesmo que “os trabalhos de salvaguarda do património durante os últimos 15 anos não foram bem feitos”. E explicou: “O Templo de A-Má é um exemplo porque foi alvo de um incêndio ou reparações em cada dois a três anos. Qual é o problema? Será um problema de gestão? Ou os incidentes aconteceram por falta de fiscalização por parte do IC? Nem todos os proprietários de construções patrimoniais são ricos, muitos podem não ter dinheiro suficiente para as reparar”. “O Governo tem de ter em conta estes factos, colaborando mais com estes proprietários para que ganhem iniciativa para proceder à manutenção e reparação das propriedades”, defendeu.
Chan Tak Seng destacou ainda o papel do Farol da Guia na vida da população, nomeadamente por mostrar como é içado o sinal de tufão. O grupo “quer sempre saber quais foram as opiniões que a UNESCO enviou ao Governo de Macau sobre a protecção do farol”, daí ter pedido, desde 2016, essas informações junto do Executivo. Porém, lamenta que até agora ainda não tenha visto documento nenhum.
Desafios para o futuro
O presidente da Associação dos Embaixadores do Património de Macau considera que “o Centro Histórico de Macau enfrenta actualmente grandes desafios, porém, os desafios não existem só nas 22 conhecidas construções e oito largos, mas também na grande quantidade de construções localizadas nas zonas tampão, que se ligam estreitamente à vida dos moradores”.
Wallace Kwah
“O Plano de Salvaguarda e Gestão do Centro Histórico ainda não foi materializado e executado, uma situação que cria factores de incerteza ao desenvolvimento do Centro Histórico. Por outro lado, os apelos para a reordenação das zonas antigas e para a renovação urbana têm vindo a ser cada vez mais fortes. Neste contexto, o modo como se concretizará a renovação urbana no Centro Histórico vai ser também uma tarefa bastante desafiante”, considerou Wallace Kwah.
Por outro lado, aponta que devem ser formados quadros nesta área: “Só assim a protecção e salvaguarda do Património Cultural poderá ser elevada a um novo patamar”.
Já o urbanista Lam Iek Chit considera que “as construções classificadas como Património Cultural têm sido acompanhadas e reparadas de forma contínua, mas durante este processo, surgiram também alguns problemas”. O também vogal do Conselho do Planeamento Urbanístico (CPU) referia-se ao facto de, até agora, ainda não ter sido divulgado nem implementado o Plano de Salvaguarda e Gestão do Centro Histórico, tratando-se apenas de um documento de referência. “Para o espaço de tempo de 15 anos, este andamento foi muito lento e não é satisfatório”, observou.
Lam Iek Chit considera que “a falta de materialização a nível legislativo tem causado impactos, por exemplo, têm acontecido constantemente polémicas sobre corredores visuais, porque as pessoas não sabem quais são os critérios de protecção”.
Ainda assim, Lam Iek Chit considera que trouxe “mais impactos positivos a Macau”. “Em 2005, o desenvolvimento de Macau encontrava-se num ritmo muito mais elevado. Podemos imaginar que, se na altura não obtivéssemos este reconhecimento, as paisagens urbanas e a atitude das pessoas sobre o Património Cultural seriam totalmente diferentes do que vemos e sentimos hoje”, explicou.
E exemplificou: “Há quem possa achar que as situações de protecção do Farol não se encontram ideais, mas se não fosse reconhecido como Património Mundial, a situação seria pior”.
Lam Iek Chit
Por outro lado, diz ainda que há “alguma carência” quanto ao trabalho de protecção do Património Cultural, como “a falta de orientações e de transparência”. “Houve frequentemente polémicas quando o IC anunciou que ia demolir algumas construções. Algumas explicações não são claras. Falta responder a questões como ‘Quais os procedimentos pelos quais passam para chegar à conclusão da demolição?’ ou ‘Quais as orientações às quais se deve sujeitar a reconstrução?’. Estas questões deviam ser esclarecidas através de uma série de orientações claras lançadas pelo IC ou pela Secretária para os Assuntos Sociais e Cultura”, explicou.
O urbanista lamenta que, 15 anos depois, os critérios ainda não tenham sido lançados. E aponta outros problemas associados: “Sem critérios, entre as opiniões apresentadas por dirigentes do Governo ou diferentes técnicos, pode haver diferenças pequenas, mas que para os proprietários são muito grandes. No CPU, continua a haver vogais com dúvidas sobre as razões para as construções na mesma rua se sujeitarem a plantas diferentes; existe muito mau entendimento pela falta de critérios”.
Por sua vez, o fundador do Grupo para a Salvaguarda do Farol da Guia, Chan Tak Seng, teme que a UNESCO volte atrás na decisão sobre o Centro Histórico. “Se o Governo continuar a fazer questão de construir mais edifícios altos, tenho receio de que a UNESCO volte a fazer alertas a Macau e até que venha a retirar o Centro Histórico da Lista do Património Mundial”, afirmou. Chan Tak Seng diz mesmo que “o Governo de Macau não tem consciência do quão preciosa a inscrição é, nem valoriza o esforço do país”. “No futuro, deve fazer mais trabalhos para ganhar o respeito do país e da UNESCO”, apontou.
“Preservação não pode ser só o aspecto externo”
Francisco Vizeu Pinheiro, por sua vez, considera que, de modo geral, o património que está inscrito na lista da UNESCO “tem sido bem cuidado e feito um bom trabalho, como nos monumentos, sobretudo igrejas e largos, mas depois há alguns problemas por resolver, como o caso da Colina da Guia”.
Vizeu Pinheiro
Fora isso, o arquitecto aponta, por exemplo, que na Avenida Almeida Ribeiro “têm sido feitos alguns erros”, nomeadamente “não manter as fachadas antigas, porque é uma avenida importante em Macau, com 100 anos”. “Se é para proteger e conservar o património, tem que se manter o que estava ou como estava. Ao fazerem-se novos edifícios vai-se perder esse património”, observou Vizeu Pinheiro.
Neste sentido, exemplificou ainda com a zona de São Lázaro, “em que muitas vezes só se deixa a fachada do edifício e o interior é remodelado”, perdendo-se assim o património. “A preservação tem que ser no interior e exterior, não pode ser só o aspecto externo”, afirmou. Além disso, também nos centros históricos da Taipa e Coloane “se deveriam manter as características únicas da vila histórica e os edifícios com dois ou três andares, bem como manter o traçado das construções”.
No que respeita aos desafios para o futuro, Vizeu Pinheiro fala nos “desafios de gestão”. “Neste momento, o património é estudado caso a caso. Penso que devia haver maior definição, por exemplo, com directivas para as zonas da cidade, como há, por exemplo, para o centro de Coloane. Directrizes que fossem comuns e claras e que permitissem a manutenção da tradição de construção portuguesa ou chinesa”, explicou.
Estas directrizes seriam importantes em zonas como o Porto Interior, apontou o arquitecto, onde há “alguns vestígios de comunidades chinesas, comunidades-pátio, que não estão propriamente preservadas”.
Outra das questões apontadas por Vizeu Pinheiro é a necessidade de, “para grandes projectos, haver consulta pública”. “Por exemplo, na zona de São Lázaro, ao cimo das escadas, há um edifício grande que foi recuperado, mas que é utilizado pelo Governo. Deveriam ser mais abertos ao público, tal como o Conservatório de Música, deveriam ser mais abertos ao público e não só utilizados pelo Governo. Isso permitiria mais espaços para visitar”, frisou.
Lista de património de Macau “é muito curta”
O arquitecto Nuno Soares considera que por ocasião da celebração dos 15 anos da classificação mundial do Centro Histórico é imprescindível falar sobre o património listado no território e na necessidade de a lista ser aumentada. “Olhamos para toda a lista de património em Macau e são 144 divididos em quatro categorias. É uma lista que é muito curta e pouco representativa da História e riqueza arquitectónica de Macau”, afirmou em declarações a este jornal.
Nuno Soares
Considera que a lista da UNESCO é “coerente” e faz sentido, mas no que respeita à de Macau, diz que temos de ser “mais ambiciosos”. “É uma boa lista, acho que todos os edifícios que lá estão fazem sentido, mas ainda não há pátios, como o Pátio da Eterna Felicidade ou o Pátio da Claridade, que são uma tipologia muito idiossincrática e muito específica de Macau. São exemplos de conjuntos que têm qualidade arquitectónica e relevância histórica e que ainda não fazem parte da lista”, explicou. Por outro lado, mencionou também a arquitectura portuária: “Temos várias pontes-cais, a número oito, a número 11 e mesmo a 16, que são edifícios muito representativos da História de Macau”.
Nuno Soares defende que se esta lista for “mais sólida”, então a lei do regime jurídico da renovação urbana – “o maior desafio que se coloca no que respeita à preservação do património” – poderá ter “um impacto positivo de melhoria nos bairros históricos”. Porém, “se a lista não aumentar, corremos o risco de ver muitos destes edifícios ser demolidos no futuro”.
O arquitecto considera que antes de a lei entrar em vigor, o Instituto Cultural deve proteger estes locais que não estão listados como património. E explica: “É uma lei que é necessária, mas perigosa, se estes edifícios não forem listados. Quando andamos pelo Centro Histórico vemos muitos edifícios que pensamos que merecem ser preservados, mas não fazem parte da lista. Isto acontece porque temos uma lei desactualizada, porque só podem ser demolidos e reconstruídos se houver concordância a 100% dos proprietários, e isso é muito difícil de conseguir”.
“A partir do momento em que entrar em vigor a nova lei do regime jurídico da renovação urbana será permitido a edifícios que estejam em situação de ruína ou que sejam muito antigos ter apenas 60% da concordância dos donos para demolir e reconstruir. Por exemplo, edifícios com mais de 40 anos, que são a maior parte dos edifícios que fazem parte da lista, bastara 80%”, prosseguiu.
Sobre o património classificado, Nuno Soares defende que “é importante desenvolver o conhecimento sobre cada um dos imóveis”. “Para serem classificados, é feita uma investigação e uma ficha técnica sobre cada um deles, mas depois há pouco desenvolvimento a seguir a esse momento”, afirmou, acrescentando que pouco conhecemos sobre a História e arquitectura de cada um destes edifícios.
“Acho que a classificação não deve ser o fim, mas um estágio apenas. Depois dos edifícios serem classificados, é importante que o estudo sobre a sua importância continue, que possamos conhecê-los mais e que esta importância seja depois disseminada pela população”, frisou. Nuno Soares diz mesmo que em Macau “não se tem feito o suficiente” sobre esta matéria.
Por outro lado, considera que é importante preservar melhor os edifícios que estão listados. “Não é só porque fazem parte da lista que automaticamente ficam bem protegidos. Acho que alguns estão bem preservados, outros não tanto. Se olharmos para a lista de património classificado em Macau temos alguns edifícios que estão em muito mau estado, que foram mesmo demolidos, por exemplo, na Travessa das Virtudes”, observou. “É importante termos um maior rigor, um maior critério e uma maior exigência quanto à sua preservação”.
Neste sentido, lembrou que há, sobretudo em edifícios de interesse arquitectónico, “protecção meramente em termos da fachada, o que é claramente insuficiente”. O arquitecto apontou também que “é necessário regulamentar melhor as áreas de protecção e integrá-las de forma mais holística no plano director de Macau”.
New Sources: Jornal Tribuna de Macau